Desregulação endócrina, monstruosidades e devir-com-xenoestrogênio
Quaisquer que sejam os futuros que nos aguardam, nós somos os futuros organismos que estamos nos tornando. (Malin Ah-King & Eva Hayward, 2019) Nos últimos anos, um conjunto de substâncias químicas tóxicas feminilizante receberam bastante atenção. Trata-se dos xenoestrogênios, substâncias sintéticas ou naturais exógenas que se assemelham estruturalmente ao estrogênio natural, popularmente conhecido como hormônio feminino. A crescente atenção a essas substâncias resulta do aumento da toxicidade ambiental e das consequências sobre os organismos humanos e outros-que-humanos, a desregulação endócrina. No presente texto, apresento o que são os desreguladores endócrinos (DEs), passando brevemente pela história de sua pesquisa científica e médica, detalho como eles estão emaranhados em ansiedades sociais e culturais sobre os limites e a pureza do dimorfismo sexual e finalizo me perguntando quais as aberturas ontoepistêmicas que os DEs nos dão. Objetivo discutir os efeitos do Antropoceno ao nível endocrinológico com a figura do “monstro” por conjugar “as maravilhas da simbiose e as ameaças de desregulação [disruption] ecológica” (Tsing et al, 2017, p. M2, ênfase no original). Os desreguladores endócrinos (DEs) são substâncias químicas exógenas e sintéticas que agem individual ou conjuntamente na interferência do sistema endócrino, afetando a produção, o envio ou a recepção hormonal. De acordo com a Endocrine Society, o campo de estudos dos DEs surge a partir da análise dos efeitos da contaminação ambiental na vida selvagem e da transposição de modelos celulares e animais, especialmente sapos, peixes e ratos, para o organismo humano. Essas substâncias “perturbam o sistema endócrino imitando ou bloqueando um hormônio natural” (idem, p. 14). Podem ser encontradas em pesticidas, produtos infantis, recipientes de alimentos, produtos de higiene e vestuário. Formas de exposição e contaminação incluem o consumo de água ou de alimento contaminados, o contato com a pele ou por inalação além da transferência biológica da placenta ou do leite materno. Os efeitos à saúde podem se manifestar até décadas após a contaminação. Causam diversos distúrbios hormonais, mas os reprodutivos recebem maior atenção. Os endocrinologistas afirmam ainda que os DEs “constituem um problema global e onipresente” (idem, p. 35). Uma das primeiras descrições da ação endócrino-desreguladora dessas substâncias foi o livro Primavera silenciosa de Rachel Carson, publicado em 1962. O foco de Carson foi a pulverização do pesticida diclorodifeniltricloroetano (DDT), desde a descoberta de seu uso agroindustrial em meados de 1940, sem estudos científicos sobre os efeitos ao meio ambiente e aos organismos. As evidências de Carson apontavam para a carcinogenicidade destas substâncias que, mesmo em doses baixas, afetavam os organismos à nível celular. Contudo, Carson também estava atenta à forma como a bioacumulação destas substâncias afetavam outras funções dos organismos, como por exemplo a capacidade do fígado de manter o equilíbrio de hormônios masculino e feminino. Sob efeito da ação endócrino-desreguladora do DDT, os estrógenos atingiam níveis altíssimos. Apesar de secundária para Carson, a ação feminilizante dos DEs foi central para o trabalho de Theo Colborn, especialmente no livro que escreveu conjuntamente com John Peterson Myers e Dianna Dumanoski, chamado O futuro roubado: Estaremos ameaçando nossa fertilidade, nossa inteligência e nossa sobrevivência? – uma história científica de mistério de 1996. Além dessa prevalência, os contornos apocalípticos ficam muito mais evidentes neste livro do que no de Carson, já presentes em seu subtítulo. No decorrer do livro, descobrimos que o futuro apocalíptico dos presságios dos autores é sintetizado no risco que os DEs, especialmente os xenoestrogênios, representam para os organismos masculinos. No escopo do livro de Colborn, os efeitos fisiológicos e comportamentais dessa ação hormonal são denominados de “problemas bizarros e intrigantes” e “perturbadores”, especialmente aqueles relacionados com o sexo e o gênero. Particularmente chocante são as gaivotas que abandonam seus ninhos e as gaivotas “lésbicas” que compartilham o ninho com outras fêmeas ao invés de machos. Contudo, os casos extremos são, nas palavras de Colborn e seus colegas (2002, p. 62), as adolescentes que, ao irem ao ginecologista porque ainda não tiveram sua primeira menstruação, descobrem que, na realidade, são “machos completamente feminilizados” que “não apenas parecem mulheres, [mas] agem e pensam a respeito de si próprios como mulheres”. Trata-se de casos de intersexualidade que, de acordo com os adjetivos mencionados acima, os atores compreendem como simplesmente anormais. Este é somente um exemplo de uma série de textos, artigos científicos, livros de divulgação cientificas, declarações públicas e filmes que mobilizam esses fatos de forma a induzir o pânico sexual. Apesar dos DEs causarem uma série de condições, doenças e distúrbios endócrinos, as que afetam o sistema reprodutivo recebem maior atenção. A literatura sobre os DEs diz que há dois motivos para isso: por um lado, como afirma a Endocrine Society, os distúrbios endócrinos relacionados aos sistema reprodutivo estão entre “as mais sólidas relações entre a exposição aos DEs e resultados adversos” (Gore et al, 2014, p. 22). Por outro, os estudos feministas da ciência demonstram que a prevalência da saúde reprodutiva nas discussões sobre os DEs ultrapassa a dimensão quantitativa e, na realidade, atualiza tensões e ansiedades relacionadas aos limites e a pureza do dimorfismo sexual. É importante notar que se atentar à forma como o pânico sexual guia a formulação de pesquisas, hipóteses e tratamentos não implica ignorar os efeitos nocivos à saúde. Ao contrário, os estudos feministas da ciência compreendem a toxicidade ambiental como um problema de precariedade diferencialmente distribuído (quem, afinal, sofre os efeitos das substâncias endócrino-desreguladoras) ao mesmo tempo que questiona os pressupostos cisheteronormativos imbuídos, por exemplo, na compreensão de médicos e cientistas como Theo Colborn. Tal abordagem é exemplarmente feita por Malin Ah-king e Eva Hayward (2019). As autoras problematizam o engendramento de debates sobre os DEs à esfera ratificada do dimorfismo sexual e questionam: Por que o sexo é mais importante do que o câncer, as doenças autoimune e até mesmo a morte? Quais nervos culturais (muitos dos quais globalizados) são acionados? E, para nós que temos preocupações feministas, como podemos reorientar o debate para longe do essencialismo, do sexismo e da heteronormatividade? (Ah-King & Hayward, 2019, n.p.) Ah-King e Hayward partem da noção de que o sexo não é
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