Testosterona, para quê e para quem?

 

A prescrição da testosterona tem se tornado comum em consultórios privados nas grandes cidades brasileiras. A justificativa mais utilizada para seu uso tem sido a suposta necessidade de “reposição” hormonal, especialmente nas mulheres de mais idade. Os/as médicos/as, principalmente ginecologistas, têm indicado este tratamento baseados em informações apresentadas em congressos e na literatura médica. Por meio de uma pesquisa realizada com médicos/as e mulheres usuárias de testosterona, discuto quais as indicações médicas para esta prescrição (Rohden, 2019).*

 

Hormônios e tratamentos da sexualidade feminina

O uso de recursos biomédicos como a testosterona precisa ser analisado à luz das discussões em torno dos processos de biomedicalização, consumo, aprimoramento e produção de subjetividades em curso especialmente nas últimas décadas. De acordo com Clarke e colegas (2010), a biomedicalização é um processo complexo, multissituado e multidirecional no qual a medicalização é redefinida em função das inovações advindas com a biomedicina tecnocientífica. A ênfase dada pelo prefixo “bio”, corresponde precisamente às transformações de elementos humanos e não humanos que só se tornam possíveis graças às inovações tecnocientíficas. Uma das consequências desse processo é a conformação de uma nova cultura ou “regime de verdade”, centrado na responsabilização individual. A preocupação com a saúde passa a ser um atributo moral do indivíduo, que precisa estar informado a respeito dos novos conhecimentos, das práticas de cuidado de si, prevenção e tratamento das doenças, e disposto a consumir os recursos agora disponíveis. Nesse processo, o corpo deixa de ser visto como relativamente estático ou imutável e enquanto foco de controle, para se converter em algo flexível e suscetível de ser transformado e reconfigurado. Segundo as autoras, passa-se de um processo de normalização para um processo de customização ou personalização associado à instituição das práticas tecnocientíficas como nichos de mercado que sustentam uma “medicina de boutique” (Clarke et al, 2010).

Outro ponto importante refere-se ao fato de que o processo de (bio)medicalização tem atingido as mulheres de forma mais acentuada. Em razão da preocupação com as funções reprodutivas e sexuais, via especialidades como a obstetrícia, a ginecologia e a endocrinologia, a medicina tem focado no corpo feminino como objeto central de saber e intervenção. Esta preocupação em torno de uma suposta especificidade dos corpos das mulheres deu origem a um conjunto singular de intervenções que têm se acentuado em períodos mais recentes (Martin, 1992; Oudshoorn, 1994; Roberts, 2007; Rohden 2008;). Sugiro que as práticas em torno da “reposição” de testosterona ajudam a refletirmos acerca dos processos de biomedicalização em curso na sociedade brasileira através da ênfase na dimensão das relações de gênero.

 

A busca de novos recursos para antigos problemas

Na sequência, apresento trechos do depoimento de uma usuária de testosterona entrevistada nesta pesquisa. Considero sua experiência exemplar, no que se refere a um certo padrão emergente de busca e utilização dos recursos farmacêuticos disponíveis. Sugiro que seu caso ilustra como o processo de biomedicalização (Clarke et al, 2010) se concretiza em termos individuais. E também demonstra, na prática, um novo tipo de medicalização ou farmaceuticalização da sexualidade (Marshall, 2009) que está em curso atualmente.

Paula, como vou chama-la aqui, na época da entrevista tinha 36 anos, era casada, com filhos, formada em administração e trabalhava no setor de serviços comerciais ligados à saúde. Ao ser perguntada sobre o uso de medicamentos e hormônios relacionados à sexualidade, contou que dois familiares mais velhos (um homem e uma mulher) estavam fazendo uso da testosterona para diminuir a fadiga e melhorar a libido. E como ela também não estava se sentindo muito bem após uma série de problemas de saúde e stress pós-traumático (para o qual utilizava antidepressivos) após episódios de violência que sofrera em um trabalho anterior, resolveu perguntar ao seu médico sobre a testosterona. É interessante que ela afirmou que não fez “nenhuma pesquisa sobre a testosterona” e que “simplesmente falou para o médico ginecologista” que, por sua vez, prescreveu o uso da substância na forma de gel para aplicação na pele. Em outro trecho da entrevista, ela novamente se refere a este processo no mesmo tom:

“Fui no médico e perguntei: ‘e a testosterona?’. E ele: ‘pode usar, vai te ajudar um monte’.  E acabamos nem conversando muito (…).”

E sobre os resultados possíveis do tratamento, iniciado havia menos de um mês, Paula afirmou:

“Eu vou te dizer, em função da libido e bem-estar, está ajudando muito. Eu não sei se é pela ação dela em si, eu não sei nada da testosterona. (…) Ela ajuda, pois altos níveis de testosterona dão um equilíbrio maior, digo equilíbrio no geral.”

Além disso, acrescentou:

“Chego em casa e tenho as coisas para fazer e não faço, não ligo as coisas. Isso que o doutor acha que a testosterona vai me ajudar também.  Ele usou um termo específico…. Que ela [a testosterona] vai me dar um pouco de rumo, que vai me clarear as ideias e vai me dar um pouco de estabilidade no geral. (…)”

O discurso de Paula apresenta uma breve ponderação acerca dos possíveis “efeitos psicológicos” de estar tomando um remédio para libido. E reafirma uma diferença em relação aos homens, que teriam mais testosterona no organismo. Uma diferença sempre qualificada positivamente pela referência a maior desejo e disposição sexual, menos sensibilidade a “fatores externos” que atrapalhariam o desejo, maior capacidade para emagrecer (o que remeteria a um padrão estético feminino almejado por ela) e ainda um estado geral de maior equilíbrio e estabilidade.

Além disso, o descompasso percebido entre o seu desinteresse sexual (que é contextualizado via a descrição de outras demandas e problemas) e a disposição de seu marido é plenamente justificado por uma suposta diferença hormonal e não por meio da consideração de demandas altamente diferenciadas por gênero (como a atenção aos filhos e à casa, por exemplo). Ela também não relatou nenhum incômodo pessoal (ou sofrimento) em perceber que estava tendo menos desejo sexual. Nem tampouco fez referência à ideia de que teria algum tipo de déficit hormonal. Apesar de ela e o médico pouco terem conversado sobre isso, a prescrição da testosterona para “ajudar” foi imediata. E o principal beneficiado do tratamento parece ser o marido que, de tão satisfeito, pediu ao médico que receitasse a testosterona “para sempre”.

 

 Testosterona, para quê e para quem?

Tanto no depoimento de Paula quanto nas entrevistas dos/as médico/as, nota-se alguns pontos importantes. O primeiro diz respeito ao fato de que são comuns as referências a outros fatores que atestariam a “complexidade” ou “multifatorialidade” da sexualidade feminina, em contraste com a masculina, apresentada como mais focada, direta, eminentemente orgânica. Paula assim como os/as médicos/as que participaram da pesquisa reproduziram argumentos acerca de que as mulheres seriam muito suscetíveis a demandas, pressões, constrangimentos reportados à vida do casal ou da família em particular. Em contraste, os homens são descritos como mais desprendidos ou desligados, o que corresponderia ao benefício de estarem “sempre prontos” ou disponíveis para o sexo. Contudo, isso não veio acompanhado, na maioria dos depoimentos (com exceção de dois profissionais que se mostraram mais contrários ao uso da testosterona), de recomendações mais efetivas nesta direção. Por exemplo, eles/as não fazem nenhuma ponderação relativa a situações particulares de cada paciente e também não consideram as desigualdades de gênero na sociedade brasileira. Ao contrário, as prescrições, ao fim e ao cabo, centravam-se na possibilidade de reposição hormonal.

Outro ponto interessante é que os profissionais, em sua grande maioria, não se questionam a respeito do significado da “queixa” relativa à falta de desejo sexual apresentada nos consultórios. O fato de que muitas mulheres afirmam que estão buscando tratamento para melhorar o desejo sexual em função de demandas dos parceiros não é problematizada.

É preciso destacar também a desconsideração (ou a pouca importância) dada ao fato de que, muitas vezes, os efeitos positivos dos tratamentos não poderiam ser exclusivamente atribuídos à testosterona. Assim como Paula, que menciona a suspeita acerca dos efeitos do tratamento hormonal serem “psicológicos”, os/as médicos/as entrevistados/as também se referiram ao “efeito placebo” das drogas, ao efeito diretamente resultado da estimulação local com o gel de testosterona, ou mesmo ao efeito do engajamento em um tratamento destinado a melhorar a vida sexual.

Em termos gerais, o que se acentua é a lógica do diagnóstico, via a suposição da falta de uma substância, e o tratamento, por meio de sua reposição. A pressuposição da associação testosterona-desejo possibilita que, na prática, seja comum os/as médicos/as constatarem que as mulheres que têm feito o uso deste hormônio têm tido um aumento no desejo e melhora na vida sexual. Talvez porque na lógica biomédica que embasa a formação desses/as profissionais, e que é também incorporada pelas pacientes em alguma medida, a ideia de uma substância que age com precisão e eficácia esteja muito presente. O que se ressalta então é que mulheres que usam testosterona teriam mais desejo. E esta constatação, por sua vez, ajuda a reforçar a própria associação entre testosterona e desejo sexual, caracterizando uma lógica circular.

Como se pôde ver, tanto para Paula quanto para os/as profissionais, a identificação de problemas quanto ao desejo se traduz na presunção de que haveria um déficit na produção de testosterona ou, pelo menos, o reconhecimento da necessidade de um acréscimo. Aqui é importante ressaltar que o emprego comum do termo “reposição hormonal” nem sempre se justificaria, já que muitas vezes não há a comprovação de uma queda ou inexistência da produção de testosterona. Ou, até mesmo, não há menção significativa à identificação de um padrão “anterior” de maior desejo sexual, que precisaria então ser “recuperado”. Diante disso, permanecem perguntas como: para quê e para quem está se promovendo a “reposição” de testosterona? Quais os efeitos da reprodução deste discurso que reduz o desejo feminino à presença ou ausência do hormônio e do desejo concebidos como masculinos?

 

Referências:

Clarke, Adele E.; Shim, Janet; Mamo, Laura; Fosket, Jennifer; and Fishman, Jennifer (eds.). Biomedicalization: Technoscience and Transformations of Health and Illness in the U.S. Durham: Duke University Press, 2010.

Marshall, Barbara. “Sexual Medicine, Sexual Bodies and the ‘Pharmaceutical Imagination’”. Science as culture,  18, n2 (2009):133-49.

Martin, Emily. The Woman in the Body. A Cultural Analysis on Reproduction. Boston: Beacon Press, 1992.

Oudshoorn, Nelly. Beyond the Natural Body: An Archeology of Sex Hormones. London: Routledge, 1994.

Roberts, Celia. Messengers of Sex: Hormones, Biomedicine and Feminism. New York: Cambridge University Press, 2007.

Rohden, Fabíola. “The Reign of Hormones and the Construction of Gender Differences”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, 15 (2008): 133–152. [https://www.scielo.br/j/hcsm/a/BRydp45Z7Ct4nmfzFQN7n9n/?format=pdf&lang=em]

Rohden, Fabíola. Adjusting hormones and constructing desires: new materialisations of female sexuality in Brazil. Culture, Health & Sexuality, v.1 (2019):1-14.  [http://https://doi.org/10.1080/13691058.2018.1534141][doi:10.1080/13691058.2018.1534141]

 

* Este artigo apresenta resultados parciais do projeto “Biotecnologias, aprimoramento e saúde: corpos e subjetividades em novas redes e enquadramentos” apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil (CNPq).

 

Descrição da imagem: ilustração em estilo de colagem, em branco e preto, com uma lâmpada em estilo oriental saindo uma fumaça de seu bocal, sobreposta por uma mão usando uma luva e empunhando uma seringa com agulha comprida. Créditos: Fabíola Rohden.

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