O cuidado como fabricação do território quilombola: apontamentos a partir de uma reflexão de gênero
A proposta desse artigo é debater as experiências de cuidado protagonizadas pelas mulheres quilombolas do quilombo Córrego do Rocha, em Minas Gerais, no intuito de compreender as estratégias criadas por elas como forma de resistência e luta antirracista, focando nas relações de gênero. Como objeto de análise, discutiremos a experiência do grupo de mulheres do quilombo do Córrego do Rocha, compreendendo suas formas de cuidado coletivo e as práticas de saúde engendradas por elas. —————- *** —————- Prelúdio: Escolhemos esse artigo para compor o RAFeCT em um momento muito importante para nós. Momento onde desejamos transformar nosso silêncio em linguagem de ação, como nos inspira Audre Lorde. Essas palavras aqui são agenciadas por infinitas mulheres afro diaspóricas, que habitam os territórios quilombolas e rurais contemporâneos. “Em sua escrita, eu sou existida” Veena Das As mulheres quilombolas dos Médio Jequitinhonha são parte fundamental e potência criadora na manutenção do bem viver dos territórios quilombolas. Tal afirmação parte do trabalho de mais de quatro anos realizado em conjunto com essas mulheres, a partir da convivência e da criação de vínculos com as lideranças desses territórios. Maria Aparecida, Nenga, Rouxa, Sebastiana, Janaína, Catilene e tantas outras mulheres protagonizam estratégias para viver e resistir diante das ausências do poder público, de políticas públicas de saúde, educação e da efetivação da governamentalidade racista (Almeida, 2022) à qual essas comunidades estão submetidas. Embora sejam protagonistas no enfrentamento às demandas territoriais e sejam, por tanto, as mantenedoras de uma boa saúde nas comunidades, é importante ressaltar que tal enfrentamento, muitas vezes romantizado e corporificado nas mulheres, que tendem a serem consideradas as “salvadoras” de toda uma cultura, são fontes inesgotáveis de adoecimento físico, mental e social. Isso significa que, as mulheres quilombolas, ao reivindicarem o cuidado como pauta política e social de suas existências, compreendem, ao mesmo tempo, a responsabilidade e o peso atribuído a elas no acesso afetivo e estrutural ao direito territorial. Nesse sentido, o cuidado cumpre processos que não estão apenas no âmbito individual: o cuidado está na experiência coletiva, seja ele na produção de sementes e parentes, seja ele nas epidemias e endemias, seja ele nas memórias traumáticas perpetuadas pela violência e pelas profundas marcas da colonização. É válido olhar para as experiências das mulheres nos territórios e em suas narrativas acerca do cotidiano do cuidado, afim de que compreendamos a memória histórica e coletiva do quilombo. Givânia Maria da Silva (2019) pontua que as mulheres quilombolas atuam como um importante acervo da memória coletiva quilombola, produzindo e atualizando as diferentes formas de produção de conhecimento. Mas não só isso. Historicamente as mulheres negras tem sido invisibilizadas e silenciadas, ou incluídas em discursos que não dão conta de interpretar as suas realidades. Sobre isso, Grada Kilomba (2019), argumenta que muitas vezes as mulheres negras habitam um espaço vazio, que atravessa as concepções de raça e gênero. Quadro da casa de Dona Dulmira, no Quilombo Córrego do Rocha. Crédito: Flora Gonçalves, 2022 Enquanto mulheres quilombolas, as lideranças estão aguerridas na defesa dos direitos coletivos que são constantemente violados. Elas são mães, tias, avós, filhas, irmãs, vizinhas, amigas, confidentes, comadres, semeadoras, quitandeiras, benzedeiras, roçadeiras, mestras das práticas de cura e todo um universo de cuidado que elas reivindicam como detentoras. Trazemos aqui não só a história dessas mulheres, mas as diferentes atuações delas em seus territórios, a partir de uma análise que leva em consideração os marcadores de raça, gênero e classe. Identificamos que, a partir das práticas de cuidado com e a partir do território, essas mulheres agenciam uma série de saberes e políticas de ação que possibilitam aos quilombos a garantia (mínima) de viver nas situações cotidianas permeadas pelo racismo institucional, estrutural e ambiental existentes na região. Para isso, é importante contextualizar tal comunidade, a fim de compreender sua luta histórica pelo direito ao acesso à água e outras demandas de reconhecimento perante ao poder público. A comunidades quilombola do Córrego do Rocha Localizada no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, a comunidade quilombola do Córrego do Rocha é um território remanescente quilombola que data, aproximadamente, de 300 anos de ocupação nos vales e chapadas daquele lugar. A região, muito cobiçada por suas minas de ouro e diamantes na época do Brasil Colonial, tem um longo histórico de exploração mineral na região do Rio Jequitinhonha. O trabalho de extração era realizado por pessoas negras escravizadas em condições violentas, insalubres e destituídos de qualquer dignidade humana. Herança do período escravocrata, as comunidades quilombolas se fixaram na região em lugares de difícil acesso, reconstruindo seus territórios à revelia das políticas sociais do poder público. Ainda como uma ferida aberta – o que Edson Cardoso (2022), em fala aberta, chama de “a mancha indelével da cor” -, tais comunidades quilombolas rurais vivem à mercê de políticas de inclusão efetivas, principalmente relativas à saúde, educação e direito territorial, como veremos. A Comunidade quilombola do Córrego do Rocha está localizada na zona rural do município de Chapada do Norte, em Minas Gerais, e conta com aproximadamente 54 famílias. A comunidade possui uma associação de moradores, uma Igreja, uma casa de sementes e uma escola descontinuada após o número de matrículas ser inferior ao exigido pela Secretaria de Educação do Município. Seus habitantes vivem em um território com pouquíssimas infraestruturas públicas, sem estradas pavimentadas ou transportes regulares. O Centro de Saúde mais perto fica na comunidade de Batieiro, um distrito de Chapada do Norte, que dista aproximadamente 5 quilômetros da comunidade. Dessas 54 famílias, grande parte da população migra para outras regiões no período de estiagem, para trabalharem no cultivo de café e outros plantios, visto que a região sofre com longas secas durante grande parte do ano. Tal fenômeno se intensificou após os reflorestamentos das monoculturas de eucalipto, que são responsabilizados pelo assoreamento das nascentes, das áreas de recargas, da secagem dos córregos e da aceleração dos processos erosivos dos territórios do Vale (Ribeiro, Eduardo Magalhães et al., 2007). É importante notar que a comunidade não possui um ponto de