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Elas são a trama, o fio, o gesto: a tessitura de territórios indígenas e quilombolas em contexto urbano

Queridas leitoras,  Estou em São Paulo, o clima aqui varia entre sol e chuva. O cimento se faz presente e a poluição já faz parte dessa carne que lhes escreve. Demorei a escrever esse texto, não sabia muito bem como tocar em suas peles, queria fazê-lo com a delicadeza de uma costureira e a criticidade de uma feminista. Inspirada pelas palavras de Gloria Anzaldúa, escolho uma carta. Este texto-tecido  tem a dureza científica e a doçura das aprendizagens que só podem florescer em campo. Esse corpo que costura-escreve, feito de carne, plástico, tecnologias, cimento e sonhos, é descendente de nordestinas rumo ao sudeste. Nordestinas e costureiras, que em noites inquietas elaboram fugas e sonhos. Aprendi a palavra ‘feminismo’ com as úmidas e revoltadas meninas da primavera secundarista, movimento de estudantes de escolas públicas que agitaram os entendimentos direito à educação e ocupação em várias partes do Brasil, e da América Latina. Ocupar e resistir, esse era o lema delas. Em minha sacola, guardo um tanto de histórias que fazem parte de quem sou, de como me constitui como bicho-gente, intelectual, antropóloga e feminista.  A fim de construir um tecido-narrativo-etnográfico marcado pelos processos de andanças e ocupações, encontrei na encruzilhada o Kilombo Urbano Ocupação Canto de Conexão e na beira de um rio cimentado, a Teko Haw Maraka’nà. Ocupações em prédios pré-existentes, que reivindicam o espaço como um território fértil para presentificar a ancestralidade indígena e quilombola.  No extremo sul do Rio Grande do Sul, há uma cidade úmida, onde se aprende a viver com os mofos, os ventos minuanos e as complexas relações raciais. A cidade de Pelotas, marcada por sua história colonial de produção de charque e do trabalho forçado de pessoas afrodiaspóricas e indígenas, tenta apagar insistentemente as influências afrodiaspóricas e indígenas. No entanto, elas brotam em cada fissura aberta no asfalto. Se, no sudeste, não passamos por três quadras sem a presença de igrejas neopentecostais, na cidade de Pelotas, não passamos três quadras sem a presença de casas religiosas de matriz africana. A presença forte das terreiras é um indicativo das ocupações de afrodescendentes no território ancestral Guarani e Charrua. O breve contexto da cidade de Pelotas, é somente um cenário de informação para que você, leitora, imagine uma cidade no sul do Brasil, com presença de pessoas pretas, pardas e indígena.  O Kilombo Ocupação Canto de Conexão, localizado na região central da cidade, enuncia e anuncia uma instituição africana em terras pindorâmicas. Desde 2017, o Kilombo ocupa aquela encruzilhada com uma história que agrega com o tempo: pessoas, plantas e alianças políticas. Naquela encruzilhada, conheci e adentrei na vida cotidiana do território, em especial, na Cozinha Solidária das Mais Velhas. Claudeth Lessa, Sônia Mara e Marli Rocha, as Mais Velhas, são as condutoras da cozinha e do florescimento do cuidado com o território.    Bordado por Isabella Guimarães   No sudeste, há uma cidade onde não há inverno, o calor tropical invade o corpo e te faz pensar que todo dia é verão. A cidade do Rio de Janeiro, tem uma importância histórica no processo de colonização como um dos espaços de grande empreendimento colonial, primeiro pelos jesuítas, depois pelo império português. O Rio de Janeiro, também abrigou lutas indígenas contra a colonização portuguesa, como a Confederação dos Tamoios. A terra do samba e do carnaval, também é terra de grandes disparidades sócio-econômicas, marcada como um polo turístico pela sua exuberância geográfica e temida pela violência urbana. Com uma expressiva presença negra, há também dois territórios indígenas no centro urbano, são elas a Teko Haw Maraka’nà e a Aldeia Vertical.   A Teko Haw Maraka’nà, localizada na região central do Rio de Janeiro, na beira do Rio Maracanã e ao lado do estádio Jornalista Mário Filho, ou estádio do Maracanã. Área de grande interesse especulativo turístico. Desde 2008 a ocupação é feita por um grupo de indígenas de vários povos, que ocuparam e fizeram morada no Antigo Museu do Índio. Com uma violenta interrupção em 2013 devido à Copa do Mundo da FIFA, a reocupação aconteceu em 2016. O território da Teko Haw é um ato intenso de reflorestamento de pensamento crítico indígena afiado pelas mãos de mulheres indígenas.  Para a geógrafa Ana Fani Carlos e a urbanista Ermínia Maricato a cidade é produzida como espaço de exclusão, um negócio, feito de pequenos e numerosos loteamentos. A cidade é edificada para uma parcela muito específica e reduzida, onde somente seu centro tem adequadas infraestrutura de saúde, educação, transporte público, saneamento básico, vias asfaltadas, iluminação, teatros públicos, etc.. A propriedade privada sob o poder dos capitalistas alimentam a especulação imobiliária que periferiza, empobrece e endivida populações pretas, pardas, quilombolas, indígenas, LGBTQIA+, pessoas com deficiência e mulheres. O Kilombo Urbano Ocupação Canto de Conexão e a Teko Haw Maraka’nà reivindicam o centro, o acesso, a saúde, a educação, o lazer e o mais importante, a produção do território por meio da presentificação da ancestralidade afrodescente, quilombola e indígena. Periferizar o centro para que a dicotomia centro X periferia não exista mais.    Ocupar, performance de Cláudio Souza, 2023. Disponível em <OCUPAR>    O texto ainda é duro, mas, assim como Gloria Anzaldúa, escolho tentar esquecer as tolices eruditas apreendidas pela educação bancária. Quero me aproximar e desviar das erudições por que esse é o íntimo de minhas aprendizagens com as mulheres do Kilombo e da Teko Haw. É no íntimo de nossas relações que aprendi a fazer ciência de outra maneira, onde  miudeza, fofoca, carinho, puxadas de orelha são os fios condutores de ciência baseada em epistemologias indígenas e quilombolas. Minha ansiedade antropológica e, portanto, colonial-capitalista contrasta com os ensinamentos das mulheres do Kilombo e da Teko Haw. Meu desejo em descrições densas e um trabalho etnográfico de sucesso se encontrou com uma relação que era de amor, cuidado e atenção. Como descrever densamente conversas pelas quais a intimidade estava sendo costurada? Como nomear aquilo que elas insistem em me dizer que “não tem palavras”? Como pensar em uma relação que extrapola tudo que aprendi na academia e

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