Tecnologias, saúde e reprodução

 

 

Em uma tarde de quarta-feira, cheguei à Maternidade Pública de Salvador (MPS), vesti o jaleco1 e coloquei o crachá que me identificava como “pesquisadora”. Cumprimentei Karina, a segurança que ficava na porta da maternidade, e me dirigi à recepção. Sentei-me ao lado de duas mulheres que registram as primeiras informações de pacientes que buscam o serviço de saúde. O público principal do hospital-maternidade são mulheres grávidas que o procuram para acompanhamento obstétrico e exames médicos, ou que vão parir, mas também mulheres com complicações de perdas espontâneas e provocadas de gravidez. O dia a dia é muito movimentado. De forma geral, as maternidades públicas brasileiras funcionam dessa maneira. Em Salvador, esses hospitais recebem sobretudo mulheres negras.

De forma resumida, esse era mais um dia de pesquisa de campo etnográfica sobre tecnologias médicas em maternidades públicas da Bahia. A partir da trajetória de experiências de pesquisa de campo em serviços de saúde, nesse texto abordo parte das tecnologias médicas com as quais mulheres interagem ao longo de processos procriativos, entre estes – a gravidez, o “diagnóstico” da gravidez2 e a interrupção ou perda de gestação. Essas tecnologias se referem a técnicas de interrupção da gestação e de tratamentos de complicações de aborto e de forma mais ampla, e aos próprios serviços e a rede de assistência à saúde.

A primeira vez que frequentei maternidades para fazer pesquisas de campo foi 2010, quando trabalhei como entrevistadora em uma pesquisa que avaliou a qualidade da atenção à saúde de mulheres internadas por abortamento em maternidades públicas do Nordeste brasileiro (Aquino, 2012). No campo da Saúde Coletiva, grupos interdisciplinares liderados por pesquisadoras feministas têm tradição de condução de pesquisas sobre aborto e suas consequências para a saúde, e esse é o caso do MUSA/ISC/UFBA – o Programa Integrado de Pesquisa e Cooperação Tecnica em Gênero e Saúde do Instituo de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia. Por muito tempo as pesquisas sobre aborto no Brasil concentraram-se em hospitais públicos, com mulheres admitidas para tratar complicações de aborto incompleto, tendo em vista as limitações impostas pela criminalização e moralização da prática e questões éticas relacionadas à investigação de temas sensíveis.

Durante minha primeira experiência de campo, a ultrassonografia obstétrica era uma tecnologia ainda pouco estudada no Brasil do ponto de vista socioantropológico. Esta tecnologia é altamente difundida na atenção obstétrica, especialmente na rede privada. Pouco se sabia sobre os seus usos nos cuidados relacionados ao aborto no Brasil. A produção científica na área socioantropológica, sobretudo de autoras e grupos baseadas nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido acumulam uma tradição de estudos sobre tecnologias médicas, incluindo a ultrassonografia obstétrica (Inhorn, 2020). A etnografia “Meio quilo de gente”: um estudo antropológico sobre ultra-som obstétrico” de Lilian Chazan é um dos primeiros trabalhos publicados no Brasil (Chazan, 2007)

A análise antropológica da ultrassonografia obstétrica nos cuidados relacionados ao aborto foi a minha pesquisa de mestrado (Lima, McCallum e Menezes, 2020), a partir de uma etnografia hospitalar, que teve continuidade durante o doutorado em Saúde Coletiva, na área de concentração em Ciências Sociais e Humanas em Saúde. Os estudos feministas das ciências e das tecnologias tem uma ampla produção sobre o tema, incluindo a discussão em torno das transformações nas formas de conceituar Pessoa a partir do momento que se tornou possível visualizar o embrião ainda no útero; outro aspecto destacado é o estudo da utilização de imagens fetais para propagar mensagens morais contrárias à prática do aborto, na tentativa de dissuadir a decisão pela interrupção da gravidez, em países em que a prática é permitida por lei ou criminalizada. Um dos trabalhos clássicos é o artigo “Fetal Images: The Power of Visual Culture in the Politics of Reproduction” de Rosalind de Petchesky.

 

 

Tecnologias médicas, reprodução e aborto no Brasil

A relação entre gênero, feminismo e tecnologias médicas foi amplamente estudada na socioantropológica feminista. Feministas da saúde se capacitaram no uso de técnicas e tecnologias médicas para utilizá-las como forma de ativismo, para possibilitar, por exemplo, o acesso ao aborto em contextos de restrição ou para o conhecimento do próprio corpo. Um exemplo de trabalho que documenta práticas que Murphy chamou “protocolos feministas”, é o livro Our Bodies, Ourselves – OBOS (Nossos Corpos por Nós Mesmas). A arte também documentou o lugar das tecnologias e instrumentos biomédicos na prática do aborto e seu contexto social mais amplo. A fotografia “Illegal instrument kit3 (Imagem 1) da fotógrafa Laia Abril, faz parte de uma exposição denominada “Sobre aborto e as repercussões da falta de acesso”4, retrata instrumentos utilizados em contexto de criminalização do aborto, baseado no acervo do museu da contracepção em Viena.

A análise situada das tecnologias é um dos ensinamentos mais importantes dos estudos sociais das ciências e das tecnologias (ECTS). Em relação ao aborto e cuidados reprodutivos, o Brasil possui especificidades que devem ser consideradas em relação à literatura internacional. Um dos principais é a criminalização e o estigma do aborto, que é permitido por lei em apenas três situações – risco de vida para a mulher, violência sexual e mais recentemente, anencefalia do feto.

A outra são profundas desigualdades raciais, sociais, econômicas, de gênero e outras brasileiras que moldam distintos acessos e usos de tecnologias. Já se sabe que o aborto afeta de maneira desproporcional a saúde de mulheres e pessoas que gestam. No Brasil, são sobretudo as mulheres negras, de menor escolaridade, que vivem em zonas rurais as que ainda sofrem de mortes evitáveis por aborto e que mais sofrem as consequências da criminalização. Mesmo em casos em que teriam direito à interrupção da gravidez, uma serie de barreiras impedem que parte das mulheres acessem os serviços, e que precisem recorrer a técnicas consideradas inseguras ou contextos inseguros (Góes e Lima, 2023). A análise interseccional é uma importante contribuição que os estudos feministas, sobretudo estudos de feministas negras, oferecem para os ECTS Feministas nacional e internacionalmente.

As tecnologias médicas perpassam esse percurso, desde a descoberta da gravidez, a interrupção da gestação e os cuidados médicos relacionados as complicações da abortos. O olhar crítico dos ECTS Feministas são ferramentas ricas para elaborar argumentos em torno do lugar das tecnologias médicas como são praticadas, revelando como estas se relacionam e incorporam valores relacionados ao aborto. Ao mencionar tecnologias médicas, neste texto, além da ultrassonografia, destaco três que são emblemáticas: o medicamento (misoprostol), a curetagem e o próprio hospital-maternidade.

Os medicamentos têm um papel crucial. A maior parte das mulheres brasileiras interrompem a gestação de maneira clandestina com o uso de medicamentos. No Brasil, a entrada do misoprostol (conhecido como Cytotec) na década de 80, diminui as mortes e consequências graves a saúde por aborto, apesar persistir como importante problema de saúde pública. Cerca de metade das mulheres que interrompem a gestação utilizando este método, precisam de uma internação em um hospital “maternidade” para tratar suas complicações. A “maternidade” também é o espaço onde são tratadas complicações de abortos espontâneos.

A maternidade como tecnologia englobante que em sua organização, simbologias, mensagens direcionadas para mulheres que se tornarão “mães” incorpora estereótipos de gênero e raça relacionados à reprodução, onde as mulheres que frequentam para tratar outras questões reprodutivas e especialmente o aborto, são lidas simbolicamente como “anti-mães” (McCallum, Menezes e Reis, 2016).

Nos hospitais a curetagem continua sendo realizada como método de tratamento de complicações de aborto, apesar do consenso de que outras técnicas são mais seguras (como a aspiração manual intra uterina – a AMIU, por exemplo, e o próprio medicamento).

A análise das tecnologias relacionadas aos processos reprodutivos, a partir de um olhar os ECTS Feministas, revelam como estas incorporam e expressam valores morais relacionados a gênero e raça e o estigma do aborto, e nos ajudam a questionar práticas de saúde naturalizadas que não consideram o bem-estar das mulheres e pessoas que gestam que necessitam de cuidados de saúde.

 

NOTAS

1 Embora com um enfoque distinto, sobre o uso de jalecos por antropólogas durante pesquisas de campo etnográficas em instituições de saúde, relações de raça e gênero, recomendo o texto “Pele negra, jalecos brancos: racismo, cor(po) e (est)ética no trabalho de campo antropológico” de Rosana Castro.

2 Embora a gravidez faça parte da vida reprodutiva das mulheres, é comum se utilizar o termo diagnóstico para se referir à descoberta da gravidez.

3 A página do Museu da Contracepção de Viena apresenta uma descrição detalhada de vários instrumentos utilizados na interrupção da gestação, ver: https://muvs.org/en/abortion/instruments/

4 On abortion and the repercussions of lack of acess – Laia Abril.

REFERÊNCIAS

Aquino, Estela M. L. et al. Qualidade da atenção ao aborto no Sistema Único de Saúde do Nordeste brasileiro: o que dizem as mulheres? Ciência & Saúde Coletiva, v. 17, n. 7, p. 1765–1776, jul. 2012.

Castro, Rosana. Pele negra, jalecos brancos: racismo, cor(po) e (est)ética no trabalho de campo antropológico. Revista de Antropologia, v. 65, n. 1, p. e192796, jan. 2022.

Chazan, Lilian K. “Meio quilo de gente”: um estudo antropológico sobre ultra-som obstétrico. Editora Fiocruz, 2007.

Zordo, Silvia. D. The biomedicalisation of illegal abortion: the double life of misoprostol in Brazil. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 23, n. 1, p. 19–36, jan. 2016.

Goes, Emanuelle F. LIMA, Mariana P. Aborto no Brasil: inseguro, ilegal e criminalizado. Policy Brief Justiça Reprodutiva N. 01 Selo Iyaleta. Org. Iyaleta – Pesquisa, Ciências e Humanidade: Salvador/BA – Brasil, 2023. 13 p.

Inhorn, Marcia C. Where has the quest for conception taken us? Lessons from anthropology and sociology. Reprod Biomed Soc Online. 2020 May 13;10:46-57. doi: 10.1016/j.rbms.2020.04.001. PMID: 32760816; PMCID: PMC7393315.

Lima, Mariana. R. P.; McCallum, Cecilia. A.; Menezes, G. M. S.. A cena da ultrassonografia na atenção ao aborto: práticas e significados em uma maternidade pública em Salvador, Bahia, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, p. e00035618, 2020.

Löwy Ilana, Dias Villela Corrêa Marilena C. The “Abortion Pill” Misoprostol in Brazil: Women’s Empowerment in a Conservative and Repressive Political Environment. Am J Public Health. 2020 May;110(5):677-684. doi: 10.2105/AJPH.2019.305562. Epub 2020 Mar 19. PMID: 32191521; PMCID: PMC7144453.

McCallum, Cecilia, Greice Menezes, and Ana Paula dos Reis. “O dilema de uma prática: experiências de aborto em uma maternidade pública de Salvador, Bahia.” História, Ciências, Saúde-Manguinhos 23.1 (2016): 37-56.

Murphy, Michelle. Seizing the means of reproduction: Entanglements of feminism, health, and technoscience. Duke University Press, 2020.

Petchesky, Rosalind Pollack. “Fetal images: The power of visual culture in the politics of reproduction.” The medicalization of obstetrics. Routledge, 2021. 361-390.

 

 

Mariana Pitta Lima é doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia

 


 

Créditos da imagem em destaque: ‘Illegal Instrument Kit’, 2018 © Laia Abril.

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