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Quando o campo é corpo, experiência e escrita: Percursos afetivos e políticos com a Antropologia Feminista

Este texto nasce de uma dor — pessoal, política, coletiva. Em 2019, entrei no mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) decidida a investigar onde doía. Três anos antes, havia perdido meu filho após um parto marcado por múltiplas violências obstétricas. Três anos também de militância, escuta, ruas e luto. O que compartilho aqui é o percurso de uma escrita, a qual aprendeu a se fazer por inteira. Entretanto, sentia que havia algo por elaborar — algo que precisava ser narrado, escrito, compreendido a partir de uma escuta atenta, mas também de uma escrita comprometida. A escolha do tema não foi acadêmica no sentido clássico do termo; foi encarnada, atravessada pela dor, pela perda e por uma busca. Na banca de defesa, o comentário que mais me marcou foi a observação de que, embora houvesse densidade e compromisso, faltava a mim no texto. A pergunta que ficou no ar — “tá doendo?” — foi também a chave para um deslocamento epistêmico. A dor, que antes parecia algo a ser superado ou controlado, passou a ser entendida, como parte constituinte da etnografia. Afinal, como tantas autoras feministas e decoloniais nos ensinam, o afeto também é campo. A tensão entre presença e ausência marcou minha escrita. Em muitos momentos, escrevi em terceira pessoa, como se a escolha do pronome pudesse me proteger da dor — ou ao menos me oferecer certo respiro analítico. Tentar me afastar, ainda que simbolicamente, era também uma forma de me proteger. Entretanto tive a sorte de contar com a orientação da professora Dra. Monalisa Dias de Siqueira, que carinhosamente me convocava a aparecer no texto — não apenas como autora, mas como sujeito situado, como corpo que sente, interpreta e transforma o campo. Esse processo, ao mesmo tempo teórico e afetivo, culminou no último capítulo da dissertação, em que finalmente consegui me inscrever. Foi ali que compreendi, em profundidade, que minha posição era inescapável: mãe no campo, nas ruas e na escrita. Como discute Donna Haraway em 1988, o conhecimento é sempre situado, parcial e encarnado.  Em 2022, ao receber menção honrosa na categoria de Direitos Humanos, durante a Reunião Brasileira de Antropologia (RBA), por um artigo fruto de um dos capítulos da dissertação,  percebi que aquele era um caminho legítimo, possível — e que há mais de nós por aí. Para quem tem interesse: o capítulo se intitula “Parto, Violência Obstétrica e Emoções: O (Re) conhecimento da Dor no Cotidiano de Mães Enlutadas e de “Mães Especiais” e está disponível online na 10ª edição de Antropologia e Direitos Humanos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).  Com o ingresso no doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em 2021, sob orientação da professora Dra. Alinne de Lima Bonetti, meu percurso ganhou novos sentidos. O encontro com a Antropologia Feminista, sobretudo através do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS), abriu outras possibilidades de pensar o compromisso político do trabalho etnográfico.  Deixei de vez de ver a implicação como fraqueza metodológica e passei a compreendê-la como potência epistemológica. Como afirma Miriam Grossi, em 1990, no livro Trabalho de Campo e Subjetividade, “na busca do outro encontra-se a si mesmo” — e é justamente nesse encontro, marcado por “alteridades complexas” (Bonetti, Alinne, 2012), que o conhecimento se produz.  Em 2022, participei como ouvinte da mesa-redonda “Novas Vozes da Antropologia Feminista”, durante o VI Encontro Mexicano-Brasileiro de Antropologia (VI EMBRA), o qual ocorreu em Florianópolis, Santa Catarina, no sul do Brasil. Ali, a professora Lina Rosa Berrio (CIESAS-México) lembrou que, para a antropologia feminista, fazer uma antropologia comprometida não é uma questão em disputa, mas um ponto de partida. Durante sua fala “Rastreando huellas. Reflexiones preliminares sobre un proceso de indagación en torno a las antropologías feministas del Caribe”, ela apresentou o volume de eventos, seminários e articulações promovidos por pesquisadoras feministas no México, reforçando o que já vínhamos vivenciando: trata-se de um campo em expansão, fruto de uma construção coletiva, que nos convoca a mapear trajetórias, práticas e alianças.   Nada do que hoje fazemos seria possível sem aquelas que vieram antes e abriram caminho. Como bem sugeriu Lina, é necessário construir uma cartografia de nós mesmas: onde estamos, o que fazemos, com quem dialogamos e o que queremos transformar. Como lembram pensadoras latino-americanas como Rita Laura Segato, Silvia Rivera Cusicanqui e Julieta Paredes, a teoria que nasce do corpo e da experiência é também um exercício de insurgência. Segato, antropóloga argentina, tem nos ensinado que o corpo das mulheres é território de disputa, e que a violência de gênero deve ser lida como parte de um projeto político. Essas autoras nos convocam a escutar o mundo com mais porosidade — atentas aos saberes que emergem da dor, da luta e da memória coletiva. Adriana Guzmán, na conferência “De que feminismo estamos falando? Gênero, Patriarcado e Despolitização”, durante o Seminário Fazendo Gênero, nos convoca a uma autocrítica potente: que feminismo é possível fazer desde a academia? Para ela, o feminismo não é algo que se estuda, mas algo que se faz — com o corpo, com a vida, com o compromisso político. Sua fala nos desafia a sair da zona de conforto acadêmica e lembrar que nosso lugar deve ser na luta contra a violência, não apenas em falar sobre a violência, “leer para poner el cuerpo, no para poner un paper y eso es fundamental” – finalizou Guzman.  Posso dizer, hoje, que a antropologia feminista me ofereceu ferramentas, para caminhar com coragem por esse enredamento. Ela me trouxe instrumentos para olhar com rigor, honestidade e sensibilidade a esse campo marcado por experiências intensas e assimétricas. É ela que me ajuda a nomear o que sinto e a contextualizar o que é vivido. A proposta não é apagar semelhanças, ou diferenças, mas reconhecê-las em sua complexidade — como múltiplas alteridades que se entrecruzam. Ser mãe, por exemplo, não é uma experiência universal: é  atravessada por marcadores de raça, classe, território, gênero e, ainda, hierarquizada. Nesse sentido, a antropologia feminista e

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