Antropologia, Racialidade, Universidade

Eu sou uma antropóloga?

    No dia 16 de janeiro de 2025, saí de Taguatinga, região administrativa do Distrito Federal, em direção ao prédio de Ciências Sociais da Universidade de Brasília (UnB). Fui assistir à Cerimônia de Posse da nova diretoria da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), que aconteceria às 17h30. Ao longo do caminho para a cerimônia, refleti sobre a possibilidade de aquele ser meu último semestre no doutorado em antropologia social no Departamento de Antropologia (DAN) da UnB. Diante desse possível desfecho, me vi novamente frente a uma pergunta que me acompanhou ao longo dos meus últimos treze anos de formação na área, entre a graduação e o doutorado, e que agora voltava a ecoar: “Eu sou uma antropóloga?” Essa não era uma questão trivial. Para algumas pessoas, afirmar-se antropóloga pode parecer um percurso natural, uma trajetória quase óbvia, onde o pertencimento à disciplina nunca foi questionado. Mas para outras — aquelas cujo sobrenome não carrega peso dentro da academia, cujas referências familiares não incluem intelectuais consagrados, cujas trajetórias são marcadas pelo desafio constante de provar e acreditar que merecem estar ali — essa pergunta tem camadas mais profundas. Ser antropóloga envolve não apenas a própria autoafirmação, mas o reconhecimento dos pares, das mais velhas, das instituições que, de alguma forma, precisam legitimar essa identidade. Essa incerteza não nasce do acaso. Ela é construída, reiterada e naturalizada ao longo da trajetória acadêmica. Desde os primeiros seminários na graduação até a defesa de uma tese de doutorado, há sempre um conjunto de gestos, olhares e silêncios que determinam quem pertence plenamente ao campo e quem está apenas de passagem, sempre sob avaliação, suspeita e validação  A sensação de ser “tolerada”, é um sentimento compartilhado por muitas de nós, especialmente por aquelas que não se encaixam no perfil historicamente dominante da disciplina. Naquele dia, era a primeira vez que eu participava de uma posse de diretoria da ABA. E não era só a minha primeira vez — ao conversar com amigas, conhecidas e colegas, percebi que, para muitas ali, esse também era um momento inaugural. E existe toda uma preparação meticulosa para que um dia como aquele ocorresse. A eleição da chapa vencedora, a transição entre a antiga gestão e a nova, a prestação de contas públicas do trabalho realizado pela gestão anterior, o anúncio oficial da chapa vencedora — tudo isso faz parte de um processo democrático que garante a continuidade e a renovação da associação. Cada etapa é crucial, pois reflete o compromisso da ABA com a transparência e a responsabilidade. Mas, naquele dia, não era apenas o ritual burocrático que importava. Algo mais profundo estava em jogo. A ABA comemorava 70 anos em 2025, e a posse da nova diretoria representava um momento histórico para a instituição. Ao longo desses anos, a antropologia brasileira passou por transformações significativas, acompanhando e refletindo as mudanças sociais, raciais, políticas e culturais do Brasil. E, naquele momento, estávamos diante de uma dessas transformações. Pela primeira vez em sete décadas de existência, a ABA empossou uma presidente negra: a professora doutora Luciana Dias. Sua eleição não foi apenas uma transferência de liderança, mas um marco na construção de uma antropologia mais diversa. Esse momento sinalizou um avanço na redistribuição dos espaços de poder, refletindo as mudanças em curso e o compromisso crescente [e esperamos que contínuo] com a democratização desses mesmos espaços. A presença de Luciana Dias na presidência da ABA indicava um avanço significativo em direção a uma disciplina mais inclusiva e representativa. Era a materialização de anos de lutas, debates e reivindicações por uma antropologia que refletisse em seus espaços de poder a diversidade da sociedade brasileira. Para muitas de nós, especialmente para aquelas que, como eu, pertencem a grupos historicamente precarizados, a posse de Luciana Dias era um sinal de que as coisas estavam, finalmente, tomando novos contornos. Era um momento de celebração, mas também de reflexão sobre o longo caminho que ainda precisamos percorrer na antropologia brasileira. Pois a antropologia, afinal, não é apenas uma disciplina acadêmica; é um campo de lutas e de possibilidades, onde cada um de nós tem um papel a desempenhar na construção de um futuro que inclua a todas, e não apenas a alguns. E, naquele raro dia, eu senti esperança. A esperança, essa força tão poderosa e ao mesmo tempo tão frágil, é uma das coisas mais perigosas e preciosas que podemos carregar. Ela nos impulsiona a imaginar futuros possíveis, a acreditar que mudanças são viáveis e que sonhos podem se tornar realidade. Mas a esperança também carrega consigo um medo silencioso: o medo de que momentos como aquele não se repitam, de que sejam raros demais, ou de que, no fim, não sejam suficientes para transformar estruturas tão profundamente enraizadas. É como se, ao mesmo tempo em que a esperança nos eleva, ela também nos lembrasse da fragilidade das conquistas e da necessidade constante do nosso movimento em direção à luta. Ainda assim, naquele dia, a esperança era mais forte. Ela ecoava nas palavras, nos olhares e nos sorrisos daquelas que, como eu, estavam ali para celebrar não apenas uma posse, mas a possibilidade de visualizar uma transformação na antropologia brasileira. E, mesmo sabendo que o caminho à frente seria longo e cheio de desafios, eu me permiti acreditar que aquele era apenas o começo. Porque a esperança, quando compartilhada, tem o poder de se multiplicar — e, talvez, seja justamente isso que nos mantenha em movimento. Os ânimos das pessoas presentes naquele dia traduziam, de forma vibrante, a importância daquele dia. A quantidade de pessoas negras de diferentes gerações ocupando aquele espaço também era algo marcante. O ambiente estava impregnado de uma mistura de felicidade, orgulho e um sentimento que se condensava na frase repetida por muitas, com um misto de alívio: “Até que enfim!”. Essas três palavras carregavam um peso imenso — eram um reconhecimento das lutas passadas, uma celebração do presente e uma sinalização para o futuro. O “Até que enfim” não era apenas um suspiro de alívio; era um

Eu sou uma antropóloga? Read Post »